
O pagamento de valores acima do teto constitucional do serviço público – que é de aproximadamente R$ 46,4 mil – põe 40 mil funcionários do Estado no grupo 1% mais rico da população brasileira. A constatação é de um estudo recém-publicado que comparou os chamados “supersalários” do setor público brasileiro com as práticas de um grupo de dez países.
A classificação de vários auxílios como verbas indenizatórias, que formalmente não compõem o salário-base, permite o pagamento extrateto e sem a incidência de Imposto de Renda. Segundo o levantamento, o Brasil desembolsou R$ 20 bilhões em remunerações extrateto entre agosto de 2024 e julho de 2025. O montante é 21 vezes superior ao da Argentina, segunda colocada no grupo analisado.
Os 53,5 mil beneficiados pelos valores extrateto no Brasil representam apenas 1,34% dos servidores analisados no país, mas o fenômeno – concentrado na magistratura, no Ministério Público e em carreiras jurídicas – compromete a imagem dos demais 98,66% do funcionalismo e evidencia como o Estado tem operado como veículo de concentração de renda.
O estudo “Benchmark internacional sobre teto salarial no setor público” foi conduzido pelo pesquisador Sergio Guedes-Reis, da Universidade da Califórnia em San Diego, para o Movimento Pessoas à Frente e a República.org. Ele comparou dados do Brasil com Alemanha, Argentina, Chile, Colômbia, Estados Unidos, França, Itália, México, Portugal e Reino Unido.
Os R$ 20 bilhões gastos com supersalários, o maior valor estimado até hoje de gastos públicos com remunerações acima do teto, correspondem a 716 mil vezes a mediana da renda nacional brasileira, estimada em R$ 28 mil anuais. A mediana representa o valor central que divide a população entre os 50% mais ricos e os 50% mais pobres. Na Argentina, onde há metade dos servidores com supersalários em comparação ao Brasil, o gasto equivale a apenas 25 mil vezes a mediana da renda nacional.
No Brasil, os 53,5 mil servidores que recebem acima do teto constitucional contrastam com os números dos demais países. A Argentina registra 27 mil funcionários nessa condição. Os Estados Unidos contabilizam pouco mais de 4 mil servidores acima do teto. Nenhum outro país pesquisado ultrapassou 2 mil trabalhadores com supersalários. A Alemanha não tem registro de casos.
Segundo Guilherme Cezar Coelho, fundador da organização República.org, o custo para o Estado pode ser bem maior. “Se aumentarmos a amostragem, o custo pode ser ainda bem maior, alcançando, possivelmente, R$ 40 bilhões, que é 40% do déficit fiscal previsto pelo governo neste ano”, alerta.
O analista político da 4intelligence Ricardo Ribeiro afirma que se trata de uma clara distorção, que ocorre principalmente no Judiciário, e que o fenômeno não é atual: “É um problema que existe há bastante tempo, essa maneira de driblar a determinação constitucional de que o teto máximo de remuneração do servidor público é o salário do ministro do Supremo Tribunal Federal [R$ 46.366,19]”.
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Reforma administrativa propõe fim de privilégios e provoca reações do Judiciário
Quase metade dos servidores do grupo 1% mais rico são juízes
Graças às remunerações acima do teto constitucional, aproximadamente 40 mil servidores públicos integram o grupo 1% mais rico do país, com renda anual superior a R$ 685 mil em 2025.
Quase metade desses servidores é da magistratura (são 19.933 juízes no 1% mais rico da população brasileira), e outros 8.446 são membros do Ministério Público. Há também 10.256 mil servidores do Executivo federal – e três quartos destes são integrantes de carreiras da Advocacia-Geral da União. Os restantes são do Poder Legislativo e outros.
Há ainda aqueles que recebem mais de R$ 1,2 milhão anuais, o que os posiciona entre os 0,4% mais ricos do país. Mais de 9 mil servidores públicos da amostra analisada fazem parte desse grupo – quase todos juízes ou membros do Ministério Público.
Segundo Ribeiro, da 4intelligence, apesar de algumas tentativas, o combate aos supersalários ainda não foi adiante em razão da influência corporativa do Judiciário, contrária a ajustes, e do constrangimento de parte do Congresso em defender o tema. Ele cita a recente proposta de reforma administrativa do deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), que ainda não avançou no Congresso.
O presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) afirmou no início do mês que pretende acelerar o rito de votação da proposta e levá-la diretamente para o plenário. “Do ponto de vista regimental, não tem nenhum prejuízo. O que nós temos que ter é condição política mesmo para aprovar. É o que estou sentindo com as lideranças”, disse ao sair de um evento sobre segurança jurídica.
A revisão dos benefícios conta com amplo apoio popular: 83% da população defende uma regulamentação efetiva dos supersalários e o resgate da autoridade do teto constitucional, conforme pesquisa de opinião feita pelo Datafolha em julho.
Moraes defende aumento de salários para juízes
No início de dezembro, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes defendeu que integrantes do Judiciário não devem ter vergonha de pleitear remuneração “mais digna”. As declarações foram proferidas durante o 19.º Encontro Nacional do Poder Judiciário e fizeram com que o ministro fosse aplaudido pela plateia.
Moraes argumentou que defender benefícios por tempo de serviço não é corporativismo, mas garantia institucional. A medida possibilitaria a permanência dos quadros mais capacitados na magistratura, evitando que migrem para cargos de consultor na Câmara ou no Senado, onde podem advogar. Na visão do ministro, é injusto que um servidor iniciante ganhe o mesmo que alguém com 40 anos de carreira.
De acordo com o estudo do Movimento Pessoas à Frente, a magistratura responde pela maior parcela dos supersalários: ao todo, foram R$ 11,5 bilhões destinados a cerca de 21 mil juízes que recebem acima do teto: 79,9% dos magistrados do país.
Entre agosto de 2024 e julho de 2025, quase 11 mil juízes brasileiros embolsaram mais de US$ 400 mil (em paridade de poder de compra – PPP), o equivalente a R$ 1 milhão. O valor supera a remuneração paga a qualquer magistrado em sete dos dez países analisados pela pesquisa.
Senado aprova novos aumentos e penduricalhos
Ainda em dezembro, o plenário do Senado aprovou um projeto que reajusta salários dos servidores da Casa e cria novos benefícios. A votação foi simbólica, sem registro dos senadores favoráveis. Apenas Eduardo Girão (Novo-CE) comunicou voto contrário. A proposta é de autoria do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (MDB-AP) e o relator foi Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB).
O projeto institui a licença compensatória, que concede um dia extra conversível em dinheiro a cada três dias trabalhados. Por ser classificada como verba indenizatória, a parcela fica isenta da incidência de Imposto de Renda e não entra no cálculo do teto constitucional. Com esse mecanismo, alguns salários podem chegar a R$ 117 mil brutos.
O texto justifica o benefício como compensação pelo “desempenho e acúmulo de múltiplas atribuições, encargos e tarefas diversas, de alta complexidade, com habitual exigência de atuação fora do horário regular de expediente”.
O benefício poderá ser recebido por servidores efetivos com funções comissionadas e por assessores dos gabinetes dos senadores. A licença compensatória também se estende aos funcionários do Tribunal de Contas da União (TCU).
Soluções internacionais apontam caminhos para combater supersalários
Além de mostrar dados sobre as distorções causadas pelos supersalários no Brasil, o estudo também indica mecanismos adotados por outros países para conter distorções remuneratórias. Chile e Reino Unido, por exemplo, dispõem de comissões salariais independentes que definem faixas e reajustes com base em critérios técnicos.
Países europeus adotam regras claras sobre adicionais e indenizações, restringindo os penduricalhos, além de trabalharem com tabelas remuneratórias unificadas, com limites salariais claros conforme o nível de responsabilidade das funções. Na Alemanha, existe vínculo direto entre as remunerações dos servidores civis e das autoridades políticas, com postos de direção e maior responsabilidade sendo mais bem pagos.
Nos Estados Unidos, valores que excedem o limite anual devem ser pagos no ano seguinte, sempre respeitando o teto de cada ano. O país também tem tetos remuneratórios diferenciados para ocupantes e não ocupantes de cargos, além de tetos que incluem todas as parcelas remuneratórias e indenizatórias, inviabilizando penduricalhos.
Fim dos supersalários no Brasil depende de coordenação política
As declarações e tomadas de decisão tanto de autoridades do Judiciário quanto do Congresso Nacional demonstram a falta de uma coalizão para combater os supersalários.
Ricardo Ribeiro, da 4intelligence, relembra que recentemente várias autoridades do governo têm se posicionado de forma contrária aos supersalários, como a ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, e o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Mas fica aquela questão: todo mundo a favor, mas não acontece nada. Será que realmente querem que se faça essa correção?”, questiona. O consultor avalia que a agenda do fim dos supersalários não foi priorizada de fato pelo gestão Lula e, na Câmara, só recentemente Motta tem falado de forma mais assertiva sobre o tema.
Ribeiro ainda pontua que a discussão tem amadurecido no país e que, assim como outros temas de ampla repercussão – como a reforma da Previdência, a tributária e a trabalhista –, a reforma administrativa também tem ganhado corpo.
“São assuntos que são discutidos por vários anos, até em um processo progressivo de amadurecimento acaba saindo e viabilizando as mudanças necessárias. Eu sou um pouco otimista também em relação aos supersalários”, comenta. Segundo o analista, possivelmente na próxima legislatura já será possível corrigir as distorções.
O pesquisador Sergio Guedes-Reis defende que em diversos casos as reformas institucionais foram produto de mobilização social e conflitos entre poderes.
Segundo o levantamento, a criação de um sistema eficaz de combate aos supersalários dependerá da formação de uma coalizão plural de atores e da capacidade de formular medidas integradas, como racionalidade e universalidade do alcance das regras, coerência do sistema remuneratório e reestruturação das carreiras.
Quando aplicadas a todos os setores, tais medidas contribuirão para reduzir a participação do Estado na manutenção dos elevados níveis de desigualdade social.
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