
O parecer do deputado Guilherme Derrite (PP-SP) sobre o projeto de lei antifacção expôs uma combinação de erro de cálculo político, falhas técnicas e tentativas frustradas de governo e oposição de transformar o debate sobre segurança pública em trunfo eleitoral para 2026. A avaliação é de especialistas ouvidos pelo Valor.
Eles também apontam “ruído jurídico” no texto que redefine conceitos, altera regras de repartição de recursos e contraria parâmetros do Ministério Público e de convenções internacionais. Além de não atender aos quatro pontos de preocupação destacados pelo Ministério da Justiça, o relatório também retiraria mais de R$ 360 milhões em recursos hoje destinados a fundos geridos pela União.
O Executivo voltou a criticar a última versão do parecer apresentado na quarta-feira (12), argumentando que o texto mantém alterações que “limitam a atuação da Polícia Federal e enfraquecem o combate às organizações criminosas”.
Pelo texto, recursos destinados aos fundos de segurança pública serão divididos com os Estados, quando a apuração for conduzida pelas autoridades locais. Segundo o governo, isso significa que a União receberia algum tipo de verba somente quando a investigação for exclusivamente da PF.
Com isso, o impacto total seria de R$ 367,48 milhões sobre três fundos e dois órgãos. A maior perda seria a do Fundo Nacional Antidrogas (Funad), que recebeu neste ano R$ 271,9 milhões (74% do total). Em seguida, seria o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), que já recebeu R$ 65,1 milhões (17%). O terceiro órgão em perdas de recursos seria o Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-fim da Polícia Federal, o Funapol. Esse instrumento já recebeu no ano R$ 27,2 milhões (7,4%) do total.
Para o professor da Escola de Segurança Multidimensional da Universidade de São Paulo (USP) Leandro Piquet, há problemas na tentativa do relator de redistribuir os fundos oriundos de apreensões. “Hoje a PF recebe entre 70% e 80% desses recursos, e a proposta avançava na direção de favorecer Estados. Isso se tornou um debate corporativo e seguirá alvo de pressão”, destaca.
Outra discussão, explica Piquet, é sobre a redação do perdimento ampliado de bens. “A tendência de ampliar a redação e facilitar a requisição de perdimento é desejável em qualquer legislação contra o crime organizado. Você precisa facilitar a investigação para chegar à evidência sobre a propriedade de um criminoso e permitir a perda de bens associados”, disse.
Outro ponto de preocupação era a criação da figura jurídica da “facção criminosa”, e a tipificação do crime de integrar facção criminosa. Para o governo, o parecer rebaixa esse conceito e coloca as facções criminosas em segundo plano. A avaliação é de que a mudança cria brechas jurídicas e dificulta a diferenciação entre crimes comuns e atos praticados por facções estruturadas.
O governo argumenta que sua proposta visa asfixiar financeiramente esses grupos, fortalecendo investigações, inteligência e operações de repressão. Segundo o Executivo, o relatório vai no sentido contrário pois enfraquece instrumentos usados pela PF e pelos Estados.
O Executivo aponta ainda que há no parecer de Derrite um risco de “desestabilização” dos presídios de segurança máxima e que o texto “envia mais criminosos para o sistema federal” ao mesmo tempo em que retira recursos do Funpen, “comprometendo a capacidade operacional dessas unidades e aumentando o risco de rebeliões ou perda de controle”.
Na avaliação de Piquet, o adiamento da votação foi estratégico. “É um freio de arrumação. As lideranças vão conversar, ouvir vetos e chegar a uma decisão. Nesse processo, o projeto original do governo ganhou peso diante do parecer do relator.”
Para ele, o PL antifacção original do governo tem origem no Ministério Público e inspiração no modelo italiano da Convenção de Palermo, o que lhe dá uma base conceitual mais sólida.
Do ponto de vista político, o impasse sobre o texto tem como pano de fundo a disputa eleitoral de 2026. Segundo o cientista político Cristiano Noronha, da Arko Advice, a megaoperação policial no Rio acendeu um alerta no governo, que identificou queda na popularidade de Lula e passou a fazer pesquisas diárias.
Para ele, a preocupação crescente da população com a violência levou o Planalto a apresentar rapidamente uma proposta robusta, enquanto a oposição viu uma forma de surfar na onda e recuperar alguma bandeira política — já que nos últimos meses ficou presa à pauta da anistia e da defesa da atuação do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) na articulação do tarifaço.
Para Noronha, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), sai desgastado, já que apesar da defesa da escolha de Derrite para relatar o texto, a condução do processo tem sido marcada por recuos, tensões com o governo e insatisfação até da oposição. “Aparentemente, [Motta] está tendo dificuldades na articulação. É papel do presidente tranquilizar e abrir espaço para negociação. Isso ainda não aconteceu.”
Em nota, a assessoria de Derrite disse que o objetivo do projeto, ao disciplinar a destinação dos recursos, é fortalecer as polícias estaduais, federais e os ministérios públicos responsáveis pela atividade investigativa: “Os valores apreendidos de organizações criminosas devem retornar às instituições que efetivamente conduziram a investigação, de modo a reforçar a atuação do agente de segurança pública na linha de frente. O substitutivo explicita, ainda, que os recursos provenientes de investigações realizadas pela própria Polícia Federal permanecerão sob responsabilidade da União.”
A nota de Derrite também comentou o projeto do governo: “Na prática, o PL do governo reduzia punição. Ele criava a chamada “organização criminosa privilegiada”, permitindo uma redução de pena de até 2/3 para integrantes primários”, afirmou. E prosseguiu: “Isso significa que um membro de facção poderia cumprir 1 ano e 8 meses em regime aberto, exatamente o contrário de punir com rigor. O substitutivo do relator elimina essa brecha, cria 11 novos crimes graves, endurece o tratamento penal e aumenta as penas de forma real: de 20 a 40 anos para integrantes e de 30 a 66 anos e 8 meses para lideranças. Pela primeira vez, um chefe de organização criminosa poderá cumprir 40 anos em regime fechado.”
Derrite disse ainda, na nota, que o texto enviado pelo Executivo não trazia instrumentos eficazes de descapitalização. “As medidas financeiras eram fracas e só poderiam ser aplicadas tardiamente, após abertura de processo.
O substitutivo é muito mais forte, pois permite o bloqueio total e imediato de bens, ativos e valores já na fase investigativa, inclusive cartões, PIX, operações bancárias e criptoativos. Além disso, cria a Ação Civil Autônoma de Perdimento de Bens, que é imprescritível e pode buscar patrimônio ilícito para sempre, um instrumento que o governo simplesmente não previu. Também autoriza a venda antecipada de cotas e ativos para impedir que empresas laranjas continuem funcionando.”
Derrite seguiu com as críticas ao projeto do governo: “Falar em monitoramento sem enfrentar os benefícios penais não resolve o problema. O PL do governo não retirava anistia, graça, indulto, livramento condicional e ainda permitia progressões de pena mais rápidas. O substitutivo do relator corrige isso, endurece de verdade e fecha todas essas portas: retira anistia, graça, indulto e liberdade condicional, e eleva a progressão de 70% a 85% da pena, que é o patamar mais alto já proposto no Brasil. Isso impede que líderes de facção permaneçam pouco tempo presos ou recuperem privilégios legais.”
Disse ainda Derrite na nota: “O PL do governo apenas amplia hipóteses da Lei 12.850/2013, mantendo o sistema atual (fragmentado e com pouca força normativa). Não define o destino dos bens apreendidos, não cria regras claras para descapitalização e não cria um marco legal autônomo. O substitutivo, por sua vez, cria um diploma completamente novo, com maior força interpretativa, tipifica novas modalidades de crime organizado (domínio territorial, novo cangaço, sabotagem, ataques a instituições financeiras e presídios) e estabelece um regime completo para o destino dos bens apreendidos: rateio entre PF e estados e destinação ao Funapol e ao Fundo de Segurança Pública. Além disso, transforma o patrimônio confiscado em recurso público imediato, garantindo desestruturação financeira real das organizações criminosas e uso desses bens para fortalecer a segurança pública.”
O líder do PL na Câmara, deputado Sóstenes Cavalcante (RJ), afirmou ao Valor que a estratégia será a de apresentar um destaque para endurecer o projeto e tentar retomar a equiparação das facções criminosas ao terrorismo. Já o governo deve atuar para negociar os pontos de preocupação. A reunião de líderes da terça-feira (18) terá pauta única para discutir e tentar votar o texto. Até lá, são esperadas novas alterações no parecer. Motta foi procurado, mas não se manifestou.
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