
A ideia de que o Supremo Tribunal Federal (STF) está agindo fora dos limites legais nos últimos anos já é tratada como verdade evidente para grande parcela da população, como atestam pesquisas de opinião recentes.
Medidas de censura prévia, inquéritos abusivos e atos com claro viés político têm contribuído para reforçar a visão de que a Corte é responsável pela erosão da democracia no Brasil. Quase metade dos brasileiros acreditam que o país vive sob uma ditadura do Judiciário, de acordo com um levantamento de agosto da Atlas/Bloomberg.
Por outro lado, a elite do poder estatal e parte da esquerda justificam as medidas do Supremo como atos para salvar as instituições democráticas. O ministro Luís Roberto Barroso, que presidiu o STF, fala com frequência no caráter “civilizatório” das ações da Corte. “O processo civilizatório existe para reprimir o mal e potencializar o bem”, afirmou recentemente, na sessão de abertura dos trabalhos do segundo semestre de 2025.
A Gazeta do Povo perguntou a especialistas que refletem sobre liberdade de expressão e democracia se ainda há alguma saída possível para reconciliar grupos com visões tão opostas sobre a liberdade de expressão. Para eles, há um problema de fundo que precisa ser resolvido: a fragilidade da cultura democrática no Brasil.
Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas da USP, é diretor-executivo da More in Common Brazil, uma ONG cuja missão é ajudar a sociedade a resgatar o foco em valores compartilhados.
Para ele, o protagonismo judicial acabou gerando um ciclo vicioso. “O STF pressupõe que a direita está atacando as instituições e reprime duramente; a repressão dura faz com que as pessoas critiquem o STF, o que justifica mais uma ação dura. Isso está numa espiral crescente. E é isso que precisa ser interrompido, na minha opinião”, diz.
A falta de transparência do Supremo, segundo o especialista, agrava esse ciclo. Ele critica, por exemplo, a inexistência de números consolidados sobre a extensão dos bloqueios de perfis em redes sociais. Recentemente, a Gazeta do Povo pediu esses dados ao STF, mas não obteve resposta.
“Eu acho muito preocupante. Vocês não foram os primeiros. A Folha já fez requisição, o UOL já fez requisição, e eles se recusam há muitos anos a fornecer. A gente não sabe quantas contas foram excluídas, porque esses processos estão em sigilo”, diz.
Para Ortellado, em muitos casos, o que o STF faz é censura prévia. “Acho muito problemático isso, porque estamos em um processo obviamente controverso. Há, no mínimo, 40% do Brasil que questiona esse processo. Esse pedaço do Brasil precisa ter voz. As pessoas que estão sendo acusadas precisam ter voz no debate público para apresentar sua defesa.”
Em um ambiente de tamanha restrição do discurso, a perda de legitimidade social do Judiciário é inevitável, opina ele. “A Justiça não pode ser vista como parcial. E o fato de estar sendo vista como parcial por uma parcela grande da população deveria ser motivo de preocupação, porque essas ações judiciais precisam ter o mínimo de legitimidade social. O Judiciário precisa entender que ele defende a democracia sendo mais técnico, mais sóbrio e mais equilibrado.”
Brasil tem poucos anticorpos contra censura porque liberdade de expressão não está enraizada na cultura, diz especialista
Pedro Franco, mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio e em Estudos Interdisciplinares pela Universidade de Nova York, identifica uma dinâmica perigosa em curso no Brasil. “O arcabouço constitucional do Brasil permitiu que o STF crescesse de tal forma que virou um superpoder. Ele pode, essencialmente, fazer o que quiser. Se você junta uma entidade institucional com poder de fazer o que quiser com uma cultura que não criou anticorpos contra a censura, cria uma combinação meio explosiva”, diz.
Para Franco, o Brasil tem pouca proteção contra a censura porque a liberdade de expressão não está enraizada na cultura, seja do ponto de vista institucional, seja nas relações sociais cotidianas. Diante da discordância, é comum no Brasil a ideia de que é necessário punir o outro lado, e não convencê-lo, afirma.
“Às vezes, a pessoa tem a impressão de que não tem tanta agência para mudar o rumo das coisas que acontecem em Brasília ou nos altos escalões do poder, mas há uma coisa que está ao seu alcance, que é punir o vizinho que discorda dela, ou o tio que tem uma opinião diferente. Pode parar de falar com ele. Assim, a pessoa sente como se estivesse fazendo alguma coisa para mudar a situação. ‘Isso está ao meu alcance’. Acho que isso é um sintoma de as pessoas estarem meio desiludidas com a política, acharem que as vias de fato são a única coisa que resta fazer”, comenta.
Segundo ele, essa perspectiva revela uma falta de compreensão sobre o que é viver em uma democracia. “Em um regime democrático, você, como cidadão, mesmo quando não está influenciando diretamente o poder lá em Brasília, tem muito poder para exercer no seu dia a dia, nas suas discussões, nos debates políticos que você tem na sua vida. Mas você não consegue exercer esse poder calando as pessoas, mas sim convencendo as pessoas, usando argumentos e a razão para dizer por que a sua visão faz mais sentido do que a visão da outra pessoa.”
Isso só pode se dar dentro de um relacionamento pessoal calcado na confiança, ressalta ele. “A persuasão menos eficiente que existe é bloquear uma pessoa, porque o efeito mais provável disso é deixá-la mais entrincheirada no lado dela.”
Para Franco, seria difícil incentivar a cultura democrática no Brasil construindo raciocínios sobre seus benefícios sociais. Uma saída melhor, segundo ele, é que a cultura democrática seja articulada a uma ética das virtudes. “O propósito da boa sociedade não é só gerar debate de ideias, é gerar um ser humano virtuoso. E o ser humano virtuoso, por sua vez, é o que gera uma sociedade virtuosa”, diz. “Se você convence as pessoas de que certos comportamentos bons para a democracia são bons para a sua alma também, isso pode ser um instrumento poderoso para convencer as pessoas a se despolarizarem”, explica.
Pablo Ortellado considera que um bom ponto de partida para diminuir a desconfiança entre grupos com diferentes visões de mundo seria a capacidade de reconhecer que pode haver boa-fé de ambos os lados. “Eu espero que as visões de mundo não sejam irreconciliáveis”, diz. Para ele, só a partir desse reconhecimento mútuo será possível discutir os limites da liberdade de expressão “de uma maneira mais qualificada” e fazer leis para o mundo digital com uma calibragem adequada.
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