InícioÚltimas NotíciasDo Éden ao Apocalipse, a Bíblia revela a tentação da superioridade

Do Éden ao Apocalipse, a Bíblia revela a tentação da superioridade

Publicado em

spot_img

Professor da Universidade de Yale e autor de mais de 20 livros, o teólogo croata Miroslav Volf está de volta às livrarias brasileiras com “O Custo da Ambição” (editora Mundo Cristão). A obra examina como a busca por superioridade corrói a identidade humana e compromete a vida em comunidade.

Segundo Volf, a armadilha da competição é tão antiga quanto a rivalidade entre Caim e Abel — e hoje se encontra disfarçada na corrida por likes, views e status. No trecho a seguir, o autor mostra como a própria Bíblia, de Gênesis ao Apocalipse, denuncia essa obsessão por estar “acima” dos outros, apontando caminhos de humildade e reconciliação.

Não sei ao certo quando comecei a pensar que o esforço para ser melhor que outra pessoa, o esforço por superioridade, é problemático. “Comecei” pode não ser o termo correto.

Talvez um modo mais adequado de expressar a incerteza seja dizer que não sei quando abandonei a heresia de que o esforço por superioridade é um bem magnífico e voltei à “fé” implícita do começo de minha infância.

Não ouvia meus pais ou minha virtuosa babá me incentivarem a superar outra pessoa em alguma coisa ou me elogiarem por tê-lo feito. Na família Volf, como percebi mais tarde, partia-se do pressuposto de que devíamos fazer tudo com excelência, de que o apartamento devia estar impecavelmente limpo (minha mãe) e de que o chocolate devia formar uma camada perfeitamente lisa e decorativa sobre o bolo (meu pai).

Não devia importar se fazíamos as coisas melhor que outros; as outras pessoas não eram nosso padrão de medida. Claro que, muitas vezes, certamente importava para mim — e, envergonho-me de dizer, ainda importa.

A primeira vez que argumentei publicamente a favor da ideia de que a superioridade não é tão valiosa quanto se costuma supor foi em outubro de 2019, no Segundo Congresso Global sobre Esportes e Cristianismo, em Grand Rapids, Michigan.

Em minha palestra, desenvolvi uma tese um tanto malquista: embora o valor (em dinheiro e reputação) do esforço bem-sucedido por superioridade nos esportes possa ser grande (usei como exemplo Lionel Messi, na época o atleta mais bem remunerado e uma das pessoas mais famosas do mundo), o valor moral desse esforço é, na melhor das hipóteses, questionável.

O esforço por superioridade, acompanhado, como é o caso com frequência, de expressões de ostentação e uma atitude de “eu sou o maior”, parecia-me contrário não apenas ao exemplo de meus pais, mas, o que era ainda mais importante, ao espírito e à letra da fé cristã, uma afronta à humildade que deve caracterizá-la.

Ao escolher o tema de minha palestra, pensei comigo mesmo: “É hora de gerar controvérsia!”.

Experiência de nivelamento

Depois da palestra, o problema do esforço por superioridade não me deixou em paz, essa tensão entre os benefícios que ele traz e os estragos que causa para nós e para nosso mundo.

Considere apenas dois exemplos. Um vem da história do desenvolvimento ético. Charles Taylor [filósofo canadense], no final de sua obra Cosmic Connections [“Conexões Cósmicas”], acompanha o curso do desenvolvimento histórico de conceitos éticos essenciais comuns aos seres humanos.

Ele observa que alguns conceitos importantes “produziram autoimagens ultrajantes de superioridade em relação a outros povos e civilizações, imagens que legitimaram muita injustiça”. Uma percepção de superioridade europeia inferiorizou outros povos e, ao mesmo tempo, legitimou séculos de violência contra eles, ilustrada de modo mais horrendo no comércio de escravizados

 O outro exemplo diz respeito aos efeitos do esforço por superioridade em nossa percepção de valor próprio. Alunos da Universidade Yale formam um grupo de indivíduos privilegiados e, supostamente, seguros de si. A maioria deles é excepcionalmente talentosa, dedicada e proficiente.

Ao chegar a Yale, porém, cada um desses indivíduos se torna apenas um dentre cinco mil alunos semelhantemente brilhantes. Para alguns, essa experiência de nivelamento é desnorteadora.

Ao contrário do que estavam habituados, as comparações com seus colegas nem sempre os colocam em posição de vantagem. Parte considerável de seu valor próprio era decorrente de serem os melhores, e agora, ao se verem imersos em uma multidão de colegas aproximadamente do mesmo nível que eles — e a maioria, em algum aspecto, superior a eles —, sua autoestima despenca.

Acostumados a serem superiores, sentem a dor aguda da inferioridade. Uma percepção de inferioridade motiva o esforço por superioridade, e o esforço por superioridade é acompanhado de sentimentos de orgulho e, ao mesmo tempo, de inferioridade.

Oscilamos entre “Sou melhor que alguns, talvez até que a maioria!” e “Todos são melhores que eu, ou, pelo menos, todos que são relevantes”.

Por trás dessa oscilação há uma convicção tácita: “Preciso ser pelo menos melhor que a maioria. Preciso estar acima da média, pois, do contrário, sou inadequado, um fracassado; não sou nada”.

E, abaixo dessa convicção, há outra que diz: “Meu valor vem de meu desempenho em comparação com os outros; eu sou meu desempenho em comparação com os outros”.

Espero mostrar que é possível nos libertarmos dessa oscilação autoperpetuadora entre percepção de inferioridade e esforço por superioridade.

É possível resgatar nosso valor próprio do cativeiro das comparações e viver de modo confiante, bebendo da água viva que brota da rocha de nossa alma, sem ansiedade quanto a nosso desempenho em relação aos outros. Se o fizermos, um novo mundo nascerá para cada um de nós e para todos nós juntos.

Obsessão predominante

Cheguei à conclusão de que tradições bíblicas e importantes pensadores teológicos podem ajudar a abrir nossos olhos para que vejamos o mal do esforço por superioridade; também podem nos incentivar para que nos esforcemos com alegria por aquilo que é genuinamente bom, isto é, por aquilo que essas coisas boas são em si mesmas e pelos benefícios que elas proporcionam para nós, para os outros e para o mundo.

Um breve olhar sobre a Bíblia é suficiente para mostrar que o esforço por superioridade é um tema predominante na história de injustiça e sofrimento humanos.

Considere Caim, primogênito amado da mãe de todos os seres humanos, e seu relacionamento com seu irmão, Abel. Ao dar à luz Caim, Eva declara: “Adquiri um varão com o auxílio do Senhor” (Gn 4.1).

Ela se mostra menos jubilosa na chegada do segundo filho e lhe dá o nome Abel, que significa “vapor”, mera névoa soprada pelo vento. Quando o Senhor transtorna a ordem de preeminência ao aceitar o sacrifício do inferior Abel em lugar da oferta do preferido Caim, este último mata seu irmão e rival (Gn 4.1-16).

Na outra extremidade da Bíblia, em Apocalipse, considere a besta com dez chifres e sete cabeças, a encarnação do mal. De acordo com João, o Vidente, o mundo todo se enche de admiração com seu poder invencível, presta-lhe culto e pergunta: “Quem é semelhante à besta? Quem pode lutar contra ela?” (Ap 13.4). A força da besta é absolutamente superior.

A Bíblia é emoldurada, portanto, pela obsessão dos seres humanos com superioridade — e com homicídio e guerra, manifestações extremas das medidas às quais as pessoas recorrem para obter e manter essa superioridade. E, entre essas histórias de Gênesis e Apocalipse, o mesmo tema surge repetidamente.

Quando dois de meus principais interlocutores, John Milton e Søren Kierkegaard, escrevem sobre os males do esforço por superioridade e esboçam alternativas para ele, estão, acima de tudo, interpretando a Bíblia. E quando Paulo, meu terceiro interlocutor principal, faz o mesmo, está escrevendo a Bíblia!

Belford Roxo 24h – Aqui a informação nunca para.
Denúncias e sugestões: (21) 97915-5787
Siga também nas redes sociais: @BelfordRoxo24h

Artigos mais recentes

Primetime Emmy 2025: Veja lista de vencedores da premiação de TV

A maior noite da televisão chegou! O Primetime Emmy Awards 2025 acontece neste domingo...

Facções e milícias avançam no mercado de internet na Baixada Fluminense

Facções e milícias expandem monopólio da internet na Baixada Fluminense, afetando moradores de Duque de Caxias, Belford Roxo e outros municípios.

Trabalho bom é o que dá vontade de voltar na segunda-feira

Toda semana tem algum meme circulando nas redes sociais no estilo “já é segunda-feira...

Amazon e Netflix unem forças para colocar anúncios no streaming

A Amazon e a Netflix confirmaram esta semana uma parceria que promete mudar a...

Mais como este

Primetime Emmy 2025: Veja lista de vencedores da premiação de TV

A maior noite da televisão chegou! O Primetime Emmy Awards 2025 acontece neste domingo...

Facções e milícias avançam no mercado de internet na Baixada Fluminense

Facções e milícias expandem monopólio da internet na Baixada Fluminense, afetando moradores de Duque de Caxias, Belford Roxo e outros municípios.

Trabalho bom é o que dá vontade de voltar na segunda-feira

Toda semana tem algum meme circulando nas redes sociais no estilo “já é segunda-feira...