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Ao vencedor, as batatas

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PARA entenderes bem o que é a política brasileira contemporânea, basta contar-te como foi julgado e condenado o ex-presidente Jair Bolsonaro.

— Como foi?
— Senta-te.

Rubião obedeceu, dando ao rosto o maior interesse possível, enquanto Quincas Borba continuava a andar, recolhendo as ideias.

— Foi em Brasília, começou ele, na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, que tinha se transformado numa pocilga, se é que ainda posso fazer essas analogias sem ser chamado de antidemocrático; Jair Bolsonaro esteve por ali, exercendo o poder durante quatro conturbados anos, até ser “derrotado” por Lula nas eleições de 2022. Parte do povo não aceitou a farsa. Era gente que acreditava que o poder emanava realmente deles. Teve quebra-quebra e um ministro enlouqueceu; outros referendaram suas decisões, confusão, tumulto, Bolsonaro fez piada, parecia não entender ou talvez não entendesse mesmo, e tanto os ministros como a democracia relativa que eles dizem defender passaram-lhe por cima. Ele ainda tentou uma defesa formal, uns tantos saíram às ruas em sua defesa, cada vez menos, mas era tarde; estava em prisão domiciliar, usando tornozeleira eletrônica, calado e humilhado; foi julgado e condenado dias depois.

— Foi realmente uma desgraça, disse Rubião.
— Não.
— Não?

O Estado totalitário

— Ouve o resto. Aqui está como se tinha passado o caso. Um dos ministros foi nomeado ao STF pelo Michel Temer e tinha fome de poder, muita fome, porque era autoritário e um bocado sádico, e tinha aprendido que era melhor ser temido do que amado. Dali pôde conspirar com seus aliados, que fustigaram os demais construírem um Estado autoritário no Brasil. A operação achou um obstáculo e derribou-o; esse obstáculo era Bolsonaro. O primeiro ato dessa série de atos foi um movimento de conservação: o Estado totalitário, ainda embrionário, tinha fome. Se em vez de Bolsonaro fosse um Alckmin ou um Amoedo, é certo que o ex-presidente Jair Bolsonaro não seria julgado e condenado, mas o fato era o mesmo; o Estado totalitário precisa saciar sua fome e manter seu controle. Se em vez de um Alckmin ou Temer fosse um filósofo ou um imortal da ABL diferia o caso no sentido de dar matéria a muitos necrológios; mas o fundo subsistia. O universo ainda não parou por lhe faltarem alguns filósofos e imortais já em decomposição moral; mas o Estado totalitário (e isto importa, antes de tudo) o Estado totalitário precisa se manter.

Rubião escutava, com a alma nos olhos, sinceramente desejoso de entender; mas não dava pela necessidade a que o amigo atribuía ao julgamento e condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro. Seguramente o ministro de aspirações tirânicas, por mais ilegalidades que cometesse no decorrer do processo, não sofreria impeachment, ao passo que o ex-presidente foi julgado e condenado de verdade, e para sempre. Explicou-lhe, como pôde, essas dúvidas, e acabou perguntando-lhe:

— E que Estado totalitário é esse?
— O Estado totalitário é o princípio. Mas não, não digo nada, tu não és capaz de entender isto, meu caro Rubião; falemos de outra coisa.
— Diga sempre.

O poder revela o homem

Quincas Borba, que não deixara de andar, parou alguns instantes.

— Queres ser meu discípulo?
— Quero.
— Bem, irás entendendo aos poucos a minha filosofia; no dia em que a houveres penetrado inteiramente, ah! nesse dia terás o maior prazer da vida, porque não há vinho que embriague como a verdade. Crê-me, o Estado, ainda mais o de caráter totalitário, é o remate das coisas; e eu, que o bajulei, sou o maior homem do mundo. Olha, vês como o meu bom Quincas Borba está olhando para mim? Não é ele, é o Estado totalitário…
— Mas que Estado totalitário é esse?
— O ímpeto autoritário é o princípio. Há nas coisas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível, — ou, para usar a frase do grande Sófocles:

O poder revela o homem.

Ao vencedor…

Pois essa sustância ou verdade relativa e autoritária, sempre autoritária, esse princípio indestrutível é que é o Estado totalitário, ou simplesmente totalitarismo. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o que eu quero que ele seja. Vais entendendo?

— Pouco; mas, ainda assim, como é que a injustiça no julgamento e condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro…

— Não há injustiça no julgamento nem na condenação nem na pena em nada. O encontro de ditas ideologias, ou a expansão de duas ideologias, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há injustiça, há só esmagamento e humilhação, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o carácter conservador e benéfico da polarização política. Supõe tu um país com um PIB de US$2 tri e duas tribos famintas. A riqueza apenas chega para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para aparelhar o Estado e criar mais e mais impostos que bancarão os luxos e os privilégios dos burocratas e os programas assistencialistas populistas; mas, se as duas tribos dividirem em paz a riquezas do país, não chegam a impor uma narrativa homogênea e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das ideologias extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os comentários dos porta-vozes do regime, as aclamações, as recompensas públicas e todos demais efeitos das ações totalitárias. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão, alguns milhões em pix solidário e manifestações sem nenhuma consequência real; ao vencedor, as batatas.

Bolhas

— Mas a opinião do injustiçado, do condenado, do humilhado?

— Não há injustiçado, condenado nem humilhado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os brasileiros de esquerda, de direita, isentões e alienados são essas bolhas transitórias.

— Bem; a opinião das bolhas…

— Bolha não pode ter opinião. Aparentemente, há nada mais contristador que uma dessas terríveis ditaduras declaradas e explícitas que devastam um ponto do globo? E, todavia, esse suposto mal é um benefício, não só porque elimina as ideologias fracas, baseadas na democracia e incapazes de impor sua vontade, como porque dá lugar à prosperidade sem contestação e ao controle total, como na China. A democracia é filha de podridões seculares; devemo-la a milhões de humanistas cheios de ilusões quanto à dignidade da pessoa humana. Repito: as bolhas ficam em silêncio. Vês este livro? É a Constituição. Se eu destruir ou corromper o meu exemplar com decisões autoritárias, que pretendem apenas destruir o espectro político adversário, não elimino a obra, que continua eterna nos exemplares subsistentes e nas edições posteriores. Eterna e inútil, inutilmente eterna, como este mundo divino e supradivino.

Este texto é uma versão do capítulo VI de Quincas Borba, de Machado de Assis, adaptado à realidade política brasileira. Se quiser ler o original, basta clicar aqui.

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