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Quão distante o Brasil está do Nepal?

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Quão distante o Brasil está do Nepal? Tectonicamente essa distância aumenta cerca de 2 centímetros ao ano, já que o Brasil em sua placa se move para oeste, fazendo erguer a Cordilheira dos Andes, e o Nepal se movimenta para o nordeste, elevando o Himalaia. 

Tecnologicamente o movimento também é lento, mas de aproximação. Nessa semana, entrou em vigor no Nepal uma lei que determina que redes sociais e outros serviços online tenham representante legal no país. Mais de 26 serviços foram nacionalmente bloqueados por descumpri-la, incluindo o WhatsApp. A Lei Felca faz exigência semelhante no Brasil no prazo de 1 ano após ser sancionada. Qual é o risco do internauta brasileiro enfrentar os mesmos bloqueios aos quais os nepaleses se opuseram violentamente?

O desligamento de serviços populares da Internet ou da rede como um todo por autoridades não é novidade. Somente neste ano também realizaram bloqueios nacionais: Paquistão, Uganda, Sudão do Sul, República de Maurício, Panamá, Líbia, Síria, Iraque e Turquia. Estes dois últimos já os fazem habitualmente.

Os bipes emitidos pelo satélite Sputnik em 1957 foram escutados com euforia por radioamadores e entusiastas por todo o mundo. Era o som de que a humanidade, através da URSS, começava a explorar o espaço. Para os EUA, esses bipes provocaram terror. Significava que o rival tinha dominado a tecnologia de mísseis intercontinentais que poderiam atingi-los com bombas nucleares.

Na coluna passada vimos quão incomum é o berço que deu origem à Internet. Patrocinada inicialmente para fins militares, a comunicação por comutação de pacotes (packet switching) foi um ganho importante para as operações de comando e controle das Forças Armadas estadunidenses. Essa tecnologia possibilitou que comandantes e tropas trocassem informações por caminhos múltiplos e redundantes que continuam funcionando mesmo se parcialmente destruídos.

Essa propriedade da Internet é demonstrada na Ucrânia, onde meus colegas têm conseguido manter o acesso à rede mesmo durante a guerra. Nacionalmente não houve um apagão de Internet e regionalmente, o caso mais severo foi o de Mariupol. A interrupção durou 30 dias nesta que foi uma das cidades mais destruídas no conflito.

A Internet propriamente dita é resiliente contra danos à sua infraestrutura feitos por uma soberania estrangeira, mas não é resistente aos desígnios do estado local. Essa rede de computadores é mundial, mas nós técnicos que a operamos não temos imunidade diplomática. Nossos empregadores cumprem as leis locais.

A desobediência a uma decisão judicial resulta em multa e até detenção, o que as autoridades fazem questão de incluir como lembrete nos parágrafos finais dos ofícios que recebo determinando o bloqueio de sites ou a apresentação de dados pessoais de algum assinante de banda larga.

Ao lado da Praia do Leme, partindo de Copacabana, Dom Pedro II inaugurou em 1874 o primeiro sistema de cabo submarino que ligava nossa capital à Europa. O desejo desse monarca em conectar seu país ao resto do mundo não é mais visto sequer nos democratas de hoje. A exigência de que cada serviço acessível pela Internet tenha um representante local que possa ser intimado, ameaçado de prisão e até efetivamente preso que surgiu na legislação da União Europeia, Rússia, Austrália, Nepal e Brasil (feita na Lei Felca) revela a tendência da fragmentação da Internet.

Em vez de uma rede mundial, o que tem surgido no horizonte são redes nacionais que são fracamente conectadas com as de outros países sob o pretexto de defesa da soberania. Fragmentar uma rede que é chamada pela combinação das palavras Inter e Rede (net, no inglês) é um paradoxo e para que ele seja mais facilmente percebido, precisamos deixar de chamar as redes sob essas condições de Internet. Não são dignas desse título.

As autoridades já sabem como as VPNs permitem burlar os bloqueios e já estão reagindo a essa possibilidade. Nos dois últimos grandes bloqueios no Brasil, do Telegram e do X, o judiciário determinou multa de até R$100 mil por dia a quem usasse VPN para acessá-los. No caso da rede social, o STF chegou a determinar que Google e Apple removessem aplicativos de VPN de suas lojas de apps (PET 12404) porém, esse item da decisão foi revogado no dia seguinte. O governo da Venezuela tomou decisão semelhante e não recuou, mantendo 40 serviços populares de VPN e DNS externos proibidos nacionalmente.

A última fronteira do combate às VPNs é a fragmentação da rede. Sem poder ter um endereço IP do exterior e um túnel criptografado para cruzar de uma placa tectônica a outra de forma incógnita, não há meios fáceis de burlar bloqueios nacionais a sites e serviços online. No Brasil, o mecanismo tecnológico para a fragmentação está pronto e há um projeto de lei que estatiza a operação da Internet no país. Juntos, esses elementos mudam o relevo da Internet brasileira ao facilitar os bloqueios em massa como feitos no Nepal sejam feitos igualmente por aqui.

O primeiro elemento é o Lacre Virtual, sistema da Anatel que sob a premissa de combate à pirataria, obrigou as operadoras a cederem à agência o acesso remoto aos roteadores de borda e servidores de DNS. De forma autônoma, sem ordem judicial e sob sigilo, a Anatel tem executado o bloqueio nacional de endereços IP e domínios. Enquanto escrevo, mais de 30 mil endereços diferentes estão bloqueados por esse sistema. Que tipo de conteúdo havia neles? Não posso te dizer, pois a agência determina sigilo sobre todos esses bloqueios.

Para que a Internet não fosse apenas uma rede dos EUA e sim mundial, já vimos nessa coluna que foi necessário criar um ecossistema de organizações sem fins lucrativos para que a rede fosse neutra o suficiente para ser adotada por todos os países e empresas, inclusive os rivais entre si. No Brasil essa organização é o CGI.br, responsável pelo registro de todos os domínios “.br” e pelo maior ponto de troca de tráfego do mundo, o IX.br.

O segundo elemento é o PL 4.557/2024 que modifica a governança da Internet no Brasil ao tornar o CGI.br subordinado à Anatel. Transforma uma organização sem fins lucrativos em controlada por uma agência estatal. Assim, passaria ao poder executivo o controle de domínios, dos endereços IP, a operação de servidores de DNS raiz e os pontos de troca de tráfego pelo país. A Anatel saltaria de agência reguladora de telecomunicações para agência operadora do serviço de Internet.

O estado brasileiro já possui os meios para fazer o mesmo que foi feito no Nepal, mas o Lacre Virtual e esse projeto de lei facilitam em muito a execução de um plano semelhante. Como já se encontra no mercado oferta comercial da Grande Firewall da China, não é necessário reinventar a roda, basta comprá-la por licitação.

Do Leme ao Nepal não há nada igual à Internet. De fato ela borra as fronteiras entre os países no mapa mundi, mas é falsa a crença de que ela é uma terra sem lei. Até os crimes cometidos em águas internacionais são investigados e punidos pela soberania da bandeira do navio. Pela Internet em terra firme, chegamos a ter três soberanias envolvidas: a do emissor da mensagem, a do serviço pela qual ela foi enviada e a do destinatário dela. Qualquer conteúdo criminoso pode ser investigado e punido por três estados. Não faltam leis para isso. O que falta é a aplicação delas.

A Internet brasileira está se aproximando em uma velocidade tectônica do que aconteceu com a Internet do Nepal. Os mecanismos de controle e bloqueio já estão implantados, o arcabouço legislativo tem crescido com os efeitos colaterais da Lei Felca e outros projetos de lei que mudam a governança da rede. A diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Se democraticamente conseguirmos equilibrar essa dose, a Internet será melhorada em vez de descaracterizada – como será se o rumo atual for mantido.

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